Selvagens em casa

 

Selvagens em casa

O homem conseguiu trazer poucas espécies de animais a seu convívio e uso. A razão está nos genes, dizem os cientistas.

Por Evan Ratliff


"Oi! Tudo bem?", diz Lyudmila Trut abrindo uma gaiola com a identificação "Mavrik". Estamos em um longo corredor formado por duas séries de engradados semelhantes em uma fazenda na periferia da cidade de Novosibirsk, no sul da Sibéria, e a saudação da bióloga de 76 anos não é para mim, mas para o peludo ocupante da gaiola. Não sei falar russo, mas reconheço na voz o tom de adoração maternal de um dono falando com seu cachorro.

 

Mavrik, o objeto da atenção de Lyudmila, é mais ou menos do tamanho de um shetland sheepdog, tem o pelo castanho-claro com um colarinho branco. Agora é a sua vez de desempenhar o papel designado: abana o rabo, vira-se de barriga para cima e arfa, ansioso por atenção. Seus vizinhos nas dezenas de gaiolas do galpão sem paredes o imitam, latindo numa explosão de animação felpuda. "Como você pode ver, todos eles desejam o contato humano", comenta Lyudmila por cima da algazarra. Mas hoje o felizardo é Mavrik. Lyudmila tira o animal da gaiola e o põe em meu colo. Aninhado em meus braços, ele é dócil como um cachorrinho doméstico.

Só que Mavrik não é nenhum cão. É uma raposa. Nessa recôndita propriedade isolada por um portão enferrujado, onde o mato cresce à vontade e cercada por florestas de bétula, Mavrik e seus parentes são a única população de raposas-prateadas domesticadas no mundo todo. (A maioria é mesmo prateada ou cinza-escura; a pelagem castanha de Mavrik é rara.) Quando digo "domesticada" não significa que foram presas e amansadas nem condicionadas a tolerar uns afagos humanos em troca de comida. Significa que elas são produto de uma reprodução seletiva visando à domesticação, como o gato doméstico e o cão labrador. Anna Kukekova, pesquisadora da Universidade Cornell, compara: "Elas lembram o golden retriever, que nem desconfia da existência de pessoas boas e pessoas más, gente conhecida e gente desconhecida". Essas raposas tratam qualquer ser humano como um possível companheiro, e tal comportamento resulta de um trabalho que talvez seja o mais extraordinário experimento de reprodução seletiva até o presente.

Tudo começou há mais de meio século, quando Lyudmila ainda cursava a pós-graduação. Chefiados pelo biólogo Dmitri Belyaev, pesquisadores do Instituto de Citologia e Genética, próximo da fazenda, escolheram 130 raposas de criadores que comercializavam a pele desses animais. Implementaram com elas uma reprodução seletiva cuja finalidade era reencenar um processo iniciado há mais de 15 mil anos: a transformação de lobos em cães pela evolução.

Em cada nova geração de raposas, Belyaev e seus colegas testavam as reações dos filhotes ao contato humano e escolhiam os mais dóceis para ser os pais da geração seguinte. Em meados dos anos 1960 o experimento mostrava resultados além do imaginado: produzia raposas como Mavrik, que não temiam o homem e até buscavam a amizade humana. A equipe inclusive repetiu o experimento com duas outras espécies: visom e rato. "Uma revelação importantíssima que devemos a Belyaev diz respeito ao fator tempo", conta Gordon Lark, biólogo que estuda genética canina. "Se me dissessem que o animal se aproximaria da porta da gaiola para farejar as pessoas, tudo bem, seria normal. Mas que se tornariam amistosos com os seres humanos tão rápido... Uau!"

Por milagre, Belyaev comprimira em poucos anos os milênios que o processo de domesticação levara na natureza. Mas ele não estava apenas tentando provar que era possível criar raposas mansas. Intuía que seria possível usá-las para desvendar os mistérios moleculares da domesticação. Sabemos que os animais domesticados têm um conjunto de características em comum, como Darwin documentou em Variação dos Animais e Plantas sob Domesticação. Tendem a ser menores, de orelhas mais caídas e cauda mais enrolada do que seus progenitores não domesticados, e essas características juvenis costumam ser atraentes aos seres humanos. A pelagem às vezes é malhada, em contraste com o pelo monocromático dos avós. Essas e outras características, chamadas de fenótipo da domesticação, são vistas em graus variados em um grande conjunto de espécies, como cães, porcos e vacas, em alguns não mamíferos, como as galinhas, e até em alguns peixes.

Belyaev cogitou que, como as raposas se tornaram domesticadas, agora talvez também apresentassem aspectos de um fenótipo da domesticação. Acertou de novo: a seleção das raposas para reprodução baseada somente em sua docilidade com os seres humanos parecia alterar a aparência física dos animais juntamente com seu temperamento. Apenas nove gerações depois, os pesquisadores registraram filhotes de raposa nascidos com orelhas mais caídas. Na pelagem surgiram manchas. As raposas, a essa altura, já abanavam o rabo e choramingavam pedindo atenção na presença de seres humanos.

O grande motor dessas mudanças, postulou Belyaev, era um grupo de genes que originava uma propensão à docilidade, um genótipo que as raposas talvez possuíssem em comum com qualquer espécie passível de domesticação. Hoje, na fazenda de raposas, Anna e Lyudmila estão procurando justamente esses genes. Cientistas de outros lugares investigam o DNA de porcos, galinhas, cavalos e outras espécies domésticas, tentando detectar as diferenças que as distinguiram de seus ancestrais. Esses estudos, acelerados pelos avanços recentes na rapidez de sequenciamento do genoma, procuram responder a uma questão fundamental da biologia, segundo Leif Andersson, da Universidade de Uppsala, na Suécia."Como é possível obter essa enorme transformação de animais selvagens em animais domésticos?", indaga ele. Quando isso for descoberto, poderemos entender não só como domesticamos animais mas também como o próprio homem domesticou o selvagem que ele já foi.

O domínio sobre plantas e animais talvez tenha sido o evento de maior repercussão na história humana. Ao lado da agricultura, a capacidade de criar e manejar animais domésticos - que o homem inaugurou com os lobos, antes das espécies comestíveis mais importantes, como a galinha e o boi - alterou nossa dieta e possibilitou o surgimento de povoações e nações-Estado. Promovendo o contato íntimo dos seres humanos com os animais, a domesticação também criou vetores de doenças que moldaram a sociedade.

Mas o processo dessas transformações teima em continuar impenetrável. Ossos de animais e esculturas de pedra às vezes lançam alguma luz sobre quando e onde cada espécie começou a conviver com os seres humanos. O mais difícil de desvendar é como isso se deu. Será que alguns javalis curiosos se aproximaram para comer o lixo e a cada geração foram entrando mais em nossa dieta? Será que seres humanos capturaram na mata alguns galos selvagens ou terá sido o galo quem primeiro se aproximou? De 148 espécies de grandes mamíferos da Terra, por que apenas 15 foram domesticadas? Por que conseguimos domar e criar cavalos por milhares de anos, mas nunca tivemos sucesso com as zebras?

A verdade é que os cientistas têm dificuldade até de definir domesticação. Todos sabemos que animais podem ser treinados para viver em contato próximo com as pessoas. Um filhote de tigre alimentado pode gravar na memória os seus captores e crescer considerando-os sua família. Mas os filhotes desse tigre serão tão selvagens quanto seus ancestrais. A domesticação, em contraste, não é qualidade obtida por treinamento em um indivíduo, e sim implantada em toda uma população ao longo de gerações que viveram próximas dos seres humanos. Muitos dos instintos selvagens da maioria dessas espécies, se não todos, foram perdidos há tempos. Em outras palavras, a domesticação está principalmente nos genes.

Ainda assim, a fronteira entre domesticado e selvagem nem sempre é precisa. Temos evidências crescentes de que ao longo da história animais ajudaram na própria domesticação, habituando-se aos seres humanos antes que tivéssemos uma participação ativa no processo. "Minha hipótese", diz Greg Larson, especialista em genética e domesticação, "é que, para a maioria dos primeiros animais domesticados - primeiro os cães, depois os porcos, as ovelhas e as cabras -, houve de início um longo período de manejo não intencional pelos seres humanos." A palavra domesticação "implica uma ação de cima para baixo, algo que os seres humanos fizeram de propósito", diz ele. "Mas a história é mais interessante."

A contribuição do experimento da fazenda de raposas para deslindar essa complexidade é ainda mais notável pelo modo como começou. O establishment da biologia na União Soviética de Josef Stalin em meados do século 20, chefiado pelo infame agrônomo Trofim Lysenko, proibiu as pesquisas sobre genética mendeliana. Mas Dmitry Belyaev e seu irmão mais velho, Nikolay, ambos biólogos, estavam fascinados com as possibilidades dessa ciência. "Foi a influência do irmão que despertou nele um interesse especial pela genética", diz Lyudmila sobre seu mentor. "Mas na época a genética era considerada uma ciência espúria." Quando os irmãos desrespeitaram a proibição e prosseguiram em seus estudos mendelianos, Belyaev perdeu seu cargo de diretor do Departamento de Fazendas de Pele. O destino de Nikolay foi mais trágico: exilado, morreu em um campo de trabalhos forçados.

Em segredo, Dmitry manteve sua dedicação à ciência genética, disfarçando seu trabalho como estudo da fisiologia animal. Era obcecado pela questão de como tal diversidade de raças de cães pôde surgir do ancestral lobo. A resposta, ele sabia, estava no nível molecular. Mas nos anos 1950 a tecnologia para sequenciar o genoma animal - e assim entender como seus genes haviam mudado ao longo da história - era um sonho. Por isso, Belyaev decidiu reproduzir a história ele mesmo. A raposa-prateada, um canídeo de parentesco com os cães que nunca havia sido domesticado, pareceu uma escolha perfeita.

O primeiro trabalho de Lyudmila Trut como estudante de pós-graduação em 1958 foi percorrer as fazendas de pele soviéticas e escolher as raposas mais tranquilas para compor a população original do experimento. A proibição dos estudos genéticos afrouxara desde a morte de Stalin, em 1953, e Belyaev montou um laboratório na Sibéria, no recém-criado Instituto de Citologia e Genética. Ainda assim, teve o cuidado de rotular sua pesquisa apenas nos termos da fisiologia, omitindo qualquer menção a genes. 

Em 1964 a quarta geração já começara a corresponder às expectativas dos pesquisadores. Lyudmila ainda recorda o momento em que viu pela primeira vez uma raposa abanar o rabo para ela. Logo as mais dóceis estavam tão parecidas com cães que pulavam no colo dos pesquisadores e lambiam seu rosto. Às vezes a mansidão dos animais surpreendia até os pesquisadores. Em uma ocasião nos anos 1970 um empregado levou uma raposa para casa como animal de estimação. Quando Lyudmila lhe fez uma visita, encontrou o homem passeando com sua raposa, sem guia, solta como um cachorro. Ela protestou. "Ah, é? Então veja", replicou o homem. Assobiou e chamou "Coca!" A raposa voltou na hora.

Ao mesmo tempo, um número maior daquelas raposas começou a apresentar sinais do fenótipo da domesticação: as orelhas caídas só se aprumavam em fases mais avançadas do crescimento, a pelagem tinha manchas. O estudo expandira-se e incluíra ratos em 1972, em seguida visons e lontras - estas se revelaram difíceis de criar - e seu experimento foi abandonado, mas os cientistas conseguiram moldar o comportamento das outras duas espécies paralelamente ao das raposas.

No entanto, justo quando começaram a surgir as ferramentas da genética que permitiriam atingir o objetivo de Belyaev, ou seja, encontrar a explicação no DNA do animal, o projeto derrapou em tempos difíceis. Com o colapso da União Soviética, as verbas para a ciência rarearam e os pesquisadores não puderam fazer muito mais do que manter vivas suas raposas. Quando Belyaev morreu de câncer, em 1985, Lyudmila assumiu a direção da pesquisa e lutou para manter o financiamento. Mas, no começo do século 21, ela corria o risco de ter de encerrar o experimento.

Mais ou menos na mesma época, a russa Anna Kukenova, pós-doutoranda em genética molecular na Universidade Cornell, leu a respeito das dificuldades do projeto. Era fascinada pelo trabalho da fazenda de raposas havia anos, e decidiu então concentrar seus estudos nesse experimento. Com a ajuda de Gordon Lark, de Utah, e financiamento dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês), ela se juntou a Lyudmila para concluir o que Belyaev começara.

Na fazenda de Novosibirsk nem todas as raposas são tão amistosas quanto Mavrik. Do outro lado da pequena rua onde está sua gaiola e a de suas colegas sociáveis há um galpão idêntico, cheio de engradados onde vivem o que os pesquisadores chamam de "raposas agressivas". Para estudar a biologia da domesticação, os cientistas precisavam criar um grupo de animais indomáveis. Assim, como em uma imagem invertida das raposas amistosas, os filhotes nessa população agressiva são classificados segundo a hostilidade de seu comportamento. Só os mais agressivos se reproduzem para formar a geração seguinte. Aqui vemos os gêmeos malvados do simpático Mavrik em atitudes dignas de um filme de terror barato: eles sibilam, arreganham os dentes, mordem a frente da gaiola quando qualquer ser humano se aproxima. "Gostaria de chamar sua atenção a esta raposa", diz Lyudmila. "Veja como ela é brava. É filha de uma mãe agressiva, mas foi criada por uma raposa dócil." A troca, feita porque a mãe não pôde amamentar a cria, acabou comprovando uma ideia: a resposta das raposas aos seres humanos vem mais da natureza que da criação. "Aqui é a genética que faz a mudança", diz ela.

Identificar a composição gênica relacionada à docilidade, porém, mostra ser uma ciência complicada. Primeiro, os pesquisadores precisam encontrar os genes responsáveis pelo surgimento dos comportamentos amistoso e agressivo. Mas essas características gerais são, na verdade, amálgamas de traços comportamentais mais específicas - medo, ousadia, passividade, curiosidade - que têm de ser dissociadas, medidas e correlacionadas a genes individuais ou a grupos de genes atuando em conjunto. Depois de identificar esses genes, os pesquisadores podem testar se aqueles que influenciam a conduta também estão por trás das orelhas caídas, da pelagem malhada e de outras características próprias de espécies domésticas. Uma teoria entre os cientistas de Novosibirsk é que os genes que governam o comportamento do animal produzem seus efeitos alterando substâncias químicas no cérebro. Por sua vez, as mudanças nessas substâncias neuroquímicas têm impactos "colaterais" sobre a aparência física do animal.

Por ora, Anna se concentra no primeiro passo: descobrir a ligação entre genes e o comportamento dócil. Todo fim de verão ela viaja de Cornell até Novosibirsk a fim de avaliar os filhotes recém-nascidos. Cada interação de um pesquisador com um filhote é padronizada e filmada: abrir a gaiola, introduzir a mão, tocar na raposa. Anna assiste aos filmes e usa medições objetivas para quantificar posturas, vocalizações e outros comportamentos dos animais. Esses dados são indicados no topo do pedigree - o registro que identifica as raposas mansas, agressivas e "híbridas" (as que têm um genitor de cada grupo). 

Em seguida, a equipe russo-americana extrai DNA de amostras do sangue de cada raposa participante do estudo e faz uma varredura em busca de flagrantes diferenças nos genomas daquelas cujo comportamento foi avaliado como dócil ou agressivo. Em um artigo a ser publicado em breve na revista Behavior Genetics, o grupo informa a descoberta de duas regiões de grande divergência nos dois tipos comportamentais que poderiam, portanto, conter importantes genes relacionados à domesticação. Cada vez mais dados indicam que a domesticação é governada não por um único gene, mas por um conjunto de mudanças genéticas. "Parece ser um fenótipo altamente complexo", conclui o artigo.

Em outro laboratório, 4,5 mil quilômetros a oeste, na cidade alemã de Leipzig, a situação dos conhecimentos sobre os genes da domesticação em ratos está no mesmo pé. Frank Albert, pesquisador do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária, obteve 30 descendentes dos ratos de Belyaev (15 dóceis e 15 agressivos), que chegaram da Sibéria em 2004 separados em duas caixas. "Encontramos regiões do genoma que influenciam a docilidade e a agressão, mas não sabemos quais dos genes causam esses sinais", diz Albert, e acrescenta, como faz o grupo de Anna: "Estamos procurando por eliminação".

Quando um dos dois grupos conseguir identificar algum dos trajetos genéticos específicos envolvidos, Albert, Anna e outros pesquisadores poderão procurar genes afins em outras espécies domesticadas. "O ideal seria definir os genes que determinam os comportamentos dócil e agressivo", observa Anna. "Mas, mesmo quando os encontrarmos, não saberemos se são esses os genes da domesticação enquanto não os compararmos a outros animais."

Em última análise, o mais importante resultado desses estudos poderá ser a identificação de genes semelhantes na mais domesticada de todas as espécies: o homem. "Saber o que mudou nesses animais será bastante esclarecedor", diz Elaine Ostrander, do Instituto Nacional de Pesquisas sobre Genoma Humano (EUA). "Todos esperamos ansiosos pelas conclusões desses estudos."

Nem todos acreditam que as raposas-prateadas de Belyaev fornecerão a chave para os segredos da domesticação. Leif Andersson, que estuda a genética de animais de criação, crê que a relação entre a docilidade e o fenótipo da domesticação poderá se revelar menos direta do que o estudo das raposas leva a crer. "Selecionamos uma característica e notamos mudanças em outras", diz, "mas nunca se provou uma relação causal."

Para entendermos a diferença entre a posição de Andersson e a dos pesquisadores de Novosibirsk, tentemos imaginar como as duas teorias podem refletir a realidade histórica. Ambas concordam com a ideia de que inicialmente os animais com maior probabilidade de ser domesticados seriam aqueles mais predispostos ao contato humano. Alguma mutação ou conjunto de mutações em seu DNA levou-os a sentir menos medo do homem e assim a viver mais próximos dele. Talvez se alimentassem de lixo humano ou se beneficiassem por ficar mais abrigados contra predadores. Em dado momento, os seres humanos perceberam alguma vantagem na proximidade desses animais e começaram a ajudar no processo, selecionando os mais receptivos e promovendo cruzamentos. "No começo do processo de domesticação, só a seleção natural atuou", explica Lyudmila. "Mais à frente, ela foi substituída pela seleção artificial."

A divergência de Andersson está no que ocorreu em seguida. Se Belyaev e Lyudmila estiverem certos, a autosseleção e depois a seleção humana dos animais menos temerosos continham também outros componentes do fenótipo da domesticação, como a cauda enrolada e o corpo menor. Para Andersson, essa teoria subestima o papel que os seres humanos tiveram na seleção dessas outras características. É verdade que a curiosidade e a ausência do medo podem ter iniciado o processo, mas, assim que os animais se viram sob controle humano, também ficaram protegidos contra os predadores da natureza. Mutações aleatórias relacionadas a características físicas que poderiam ter sido logo eliminadas na vida selvagem, como as manchas no pelo, puderam persistir. E então prosperaram, em parte porque as pessoas gostavam delas. "Não foi porque os animais tinham comportamento diferente, mas porque eram mais graciosos", supõe Andersson.

Em 2009 Andersson deu respaldo a sua teoria comparando mutações em genes relacionados à cor do pelo em variedades de porcos domésticos e selvagens. Os resultados, ele aponta, "demonstram que os primeiros criadores selecionaram intencionalmente os porcos com nova coloração na pelagem. O motivo pode ter sido simples como a preferência pelo exótico ou uma seleção que reduzisse a camuflagem."

Em sua busca pelos genes da domesticação, Andersson investiga o mais populoso animal doméstico do mundo: a galinha. O ancestral dessas aves, o galo selvagem, vivia livre nas selvas da Índia, do Nepal e de outras partes do sul e do sudeste da Ásia. Por volta de 8 mil anos atrás, os seres humanos começaram a criá-lo para servir de alimento. Em 2010, Andersson e colegas compararam o genoma inteiro de galinhas domésticas com os de populações de galo selvagem mantidas em zoológico. Identificaram uma mutação em um gene conhecido como TSHR, encontrada apenas em populações domésticas. A implicação é que o TSHR teve algum papel na domesticação, e agora a equipe tenta determinar exatamente o que a mutação do TSHR controla. A hipótese de Andersson é que esse gene talvez influencie os ciclos reprodutivos das aves, permitindo que as galinhas se reproduzam com maior facilidade em cativeiro do que o galo selvagem na natureza - uma característica que os criadores pioneiros teriam gostado de perpetuar. Essa mesma diferença existe entre os lobos, que se reproduzem uma vez por ano e sempre na mesma estação, e os cães, que podem se reproduzir mais de uma vez por ano em qualquer estação.

Se a teoria de Andersson for correta, poderá ter implicações fascinantes em nossa espécie. O biólogo Richard Wrangham supõe que nós também passamos por um processo de domesticação que alterou nossa biologia. "A questão de qual é a diferença entre o porco doméstico e o javali ou entre uma galinha e um galo selvagem", diz Anderson, "é semelhante à questão de qual é a diferença entre um ser humano e um chimpanzé."

O ser humano não é simplesmente um chimpanzé domesticado, mas compreender a genética da domesticação em galinhas, cães e porcos ainda pode nos revelar coisas surpreendentes sobre as origens de nosso comportamento social. "Mais de 14 mil genes se expressam no cérebro; porém, poucos são compreendidos", ressalta Anna Kukekova. Descobrir quais desses genes estão relacionados ao comportamento social é tarefa complicada. Não se podem fazer experimentos de reprodução seletiva com seres humanos, e os estudos que tentam descobrir diferenças inatas no comportamento entre pessoas ou populações são, para dizer o mínimo, problemáticos.

Em última análise, o mais importante resultado desses estudos poderá ser a identificação de genes semelhantes na mais domesticada de todas as espécies: o homem. "Saber o que mudou nesses animais será bastante esclarecedor", diz Elaine Ostrander, do Instituto Nacional de Pesquisas sobre Genoma Humano (EUA). "Todos esperamos ansiosos pelas conclusões desses estudos."

Nem todos acreditam que as raposas-prateadas de Belyaev fornecerão a chave para os segredos da domesticação. Leif Andersson, que estuda a genética de animais de criação, crê que a relação entre a docilidade e o fenótipo da domesticação poderá se revelar menos direta do que o estudo das raposas leva a crer. "Selecionamos uma característica e notamos mudanças em outras", diz, "mas nunca se provou uma relação causal."

Para entendermos a diferença entre a posição de Andersson e a dos pesquisadores de Novosibirsk, tentemos imaginar como as duas teorias podem refletir a realidade histórica. Ambas concordam com a ideia de que inicialmente os animais com maior probabilidade de ser domesticados seriam aqueles mais predispostos ao contato humano. Alguma mutação ou conjunto de mutações em seu DNA levou-os a sentir menos medo do homem e assim a viver mais próximos dele. Talvez se alimentassem de lixo humano ou se beneficiassem por ficar mais abrigados contra predadores. Em dado momento, os seres humanos perceberam alguma vantagem na proximidade desses animais e começaram a ajudar no processo, selecionando os mais receptivos e promovendo cruzamentos. "No começo do processo de domesticação, só a seleção natural atuou", explica Lyudmila. "Mais à frente, ela foi substituída pela seleção artificial."

A divergência de Andersson está no que ocorreu em seguida. Se Belyaev e Lyudmila estiverem certos, a autosseleção e depois a seleção humana dos animais menos temerosos continham também outros componentes do fenótipo da domesticação, como a cauda enrolada e o corpo menor. Para Andersson, essa teoria subestima o papel que os seres humanos tiveram na seleção dessas outras características. É verdade que a curiosidade e a ausência do medo podem ter iniciado o processo, mas, assim que os animais se viram sob controle humano, também ficaram protegidos contra os predadores da natureza. Mutações aleatórias relacionadas a características físicas que poderiam ter sido logo eliminadas na vida selvagem, como as manchas no pelo, puderam persistir. E então prosperaram, em parte porque as pessoas gostavam delas. "Não foi porque os animais tinham comportamento diferente, mas porque eram mais graciosos", supõe Andersson.

Em 2009 Andersson deu respaldo a sua teoria comparando mutações em genes relacionados à cor do pelo em variedades de porcos domésticos e selvagens. Os resultados, ele aponta, "demonstram que os primeiros criadores selecionaram intencionalmente os porcos com nova coloração na pelagem. O motivo pode ter sido simples como a preferência pelo exótico ou uma seleção que reduzisse a camuflagem."

Em sua busca pelos genes da domesticação, Andersson investiga o mais populoso animal doméstico do mundo: a galinha. O ancestral dessas aves, o galo selvagem, vivia livre nas selvas da Índia, do Nepal e de outras partes do sul e do sudeste da Ásia. Por volta de 8 mil anos atrás, os seres humanos começaram a criá-lo para servir de alimento. Em 2010, Andersson e colegas compararam o genoma inteiro de galinhas domésticas com os de populações de galo selvagem mantidas em zoológico. Identificaram uma mutação em um gene conhecido como TSHR, encontrada apenas em populações domésticas. A implicação é que o TSHR teve algum papel na domesticação, e agora a equipe tenta determinar exatamente o que a mutação do TSHR controla. A hipótese de Andersson é que esse gene talvez influencie os ciclos reprodutivos das aves, permitindo que as galinhas se reproduzam com maior facilidade em cativeiro do que o galo selvagem na natureza - uma característica que os criadores pioneiros teriam gostado de perpetuar. Essa mesma diferença existe entre os lobos, que se reproduzem uma vez por ano e sempre na mesma estação, e os cães, que podem se reproduzir mais de uma vez por ano em qualquer estação.

Se a teoria de Andersson for correta, poderá ter implicações fascinantes em nossa espécie. O biólogo Richard Wrangham supõe que nós também passamos por um processo de domesticação que alterou nossa biologia. "A questão de qual é a diferença entre o porco doméstico e o javali ou entre uma galinha e um galo selvagem", diz Anderson, "é semelhante à questão de qual é a diferença entre um ser humano e um chimpanzé."

O ser humano não é simplesmente um chimpanzé domesticado, mas compreender a genética da domesticação em galinhas, cães e porcos ainda pode nos revelar coisas surpreendentes sobre as origens de nosso comportamento social. "Mais de 14 mil genes se expressam no cérebro; porém, poucos são compreendidos", ressalta Anna Kukekova. Descobrir quais desses genes estão relacionados ao comportamento social é tarefa complicada. Não se podem fazer experimentos de reprodução seletiva com seres humanos, e os estudos que tentam descobrir diferenças inatas no comportamento entre pessoas ou populações são, para dizer o mínimo, problemáticos.

 

 

Igor Daniel Martins Pereira - 13/06/2011

Fonte: https://viajeaqui.abril.com.br/national-geographic/edicao-132/animais-selvagens-em-casa-619816.shtml?page=3